O DIA DOS NAMORADOS SEM NENHUM NAMORO

 FREELANCER  NÃO  COMEMORA NEM O DIA DOS NAMORADOS

Era um belo dia de sol do mês de junho do ano da graça do ano,  2.000, um Novo Milênio pleno de esperanças., paz e amor. mas nem tudo são flores no dia que o comércio inventou para celebrar os enamorados. Na batalha do dia a dia surgem muitos imprevistos, nem tudo são flores, as coisas não acontecem conforme nossos desígnios , o destino inflexível costuma nos pregar peças. Estava me dirigindo até a UFF, em Niterói, eram 13h, onde iria assistir mais uma aula de Antropologia, desta vez com o ilustre Marco Antônio Mello, um apaixonado pelos ensinamentos que ministrava aos seus alunos. Mello era um mestre muito exigente, que obviamente queria em contrapartida muita dedicação de seus pupilos. Suas aulas eram muito ricas e fascinantes, para quem se dedicava inteiramente à nobre ciência do homem. Eu sabia que era um dia muito especial e comprei flores para minha querida e muito exigente mulher, quanto a certas datas, que deveria ser fielmente celebradas, principalmente a data dos enamorados, véspera do santo protetor casamenteiro, Antônio. 

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Mas na aula de Antropologia o negócio era bem outro, estávamos fixados nos mistérios dos rituais de sepultamento, segundo Fustel de Coulanges em sua magnífica obra  A Cidade Antiga.  De repente toca insistentemente o celular, tentei desligar, a chamada insistente continuava. Pedi licença (ato imperdoável) e fui correndo para o corredor atender. Era o nobre amigo Thiago que servia de cicerone para o Big Boss da Ernst Leitz, das famosas câmeras fotográficas Leica, até então insubstituíveis, pela qualidade de fabricação. O vice presidente Ulli Heinzs havia me presenteado com uma Leica M3,  uma joia. Thiago perguntava por que havia demorado a atender, onde estava, então respondi que estava em aula e o que estava acontecendo  assim para tanta urgência?. Thiago fez um breve relato que no Rio estava tudo parado, uma confusão total, a rua Jardim Botânico com enorme cerco policial a um ônibus (o tristemente famoso 174) , onde havia reféns na mira de bandidos. Acalmei o amigo e disse que iria voltar pra casa pegar o equipamento logo que pudesse. Pensei bem e voltei para tentar me concentrar para a aula, que terminaria às 17h, não havia condição de sair antes do término, ficaria mal. Esperei terminar e em vez de ficar com o Mello e os mais fiéis em um dos inúmeros barzinhos do Gragoatá , onde contaria suas inúmeras histórias, sempre em torno da Antropologia, extensão de suas aulas, sempre regadas a inúmeras cervejas, a parte mais agradável. Desta vez fui logo embora, tomei a barca, com de hábito e ao chegar ao Rio tomei logo um ônibus onde todos falavam do cerco policial ao Jardim Botânico. Perto de casa, o telefone, que por esquecimento estava desligado e começa a vibrar. Era o querido Delfim. para os mais chegados o Rabuja , editor de Fotografia do Estadão, espumando de raiva que pergunta aos berros " Porra Alcyr, você estava aonde, estou ligando desde cedo e você sumiu" acompanhado de um sonoro palavrão. Respondi que estava em Niterói, na faculdade, ele soltou mais alguns impropérios e continuou " Sei que você está com equipamento , pega um taxi e vai pra 15a D.P. na Gávea render o  Otávio e fica no plantão". Fiquei gelado, já estava perto de casa, pensei em como iria quebrar a resistência da minha querida Marlene que havia preparado um belo jantar regado a um Bordeaux à luz de velas. Afinal não tinha hora pra voltar do serviço. Ao chegar com muita rapidez dei o regalo, recitei um poema peguei o equipamento para decepção geral e disse que voltaria em breve e zarpei como uma flecha, Delfim ligava sem parar. Fiquei a saber pelo colega Raimundo, que São Paulo ligava sem parar a pedir fotos e mais fotos em um ritmo alucinado com a clássica pergunta "Cadê a foto cara***"que deixava o Rabuja, cada vez mais desorientado. Tive de mentir para tentar acalmar o chefe, disse que estava chegando, quando estava apenas entrando no Rebouças. Consegui então chegar na delegacia às 18h. Otávio Magalhães me esperava e reclamou de demora, me deu uma carga de filme e pilhas para o flash e disse que tudo já estava feito, era o tradicional plantão, para algum imprevisto. Fiquei desolado, todas as equipes haviam partido, estava sozinho e sem motorista à disposição. Quinze minutos depois toca o celular, era O Rabuja dizendo que um carro iria me levar até o Forte Copacabana para fazer a cobertura de um jantar em comemoração ao Congresso Mundial de Jornalismo. Tive de me conformar e um só pensamento a repetir comigo mesmo " Odeio esse dia comercial dos namorados" e pra completar roguei mil pragas contra Adam Smith, Keynes, capitalismo, congresso, enfim contra tudo e contra todos. Meu belo jantar iria pro brejo e quando chegasse em casa iria ouvir poucas e boas. Enfim chegou o bravo piloto pra me levar ao jantar de gala, a recomendação era seguir as instruções da diretora da Sucursal/Rio, Suely Caldas, muito exigente com todos, mas me tratava com cordialidade em virtude de ter trabalhado com Álvaro Caldas, seu marido. Suely me indicou algumas mesas que seriam importantes. Em uma delas, relutei, ela percebeu minha indecisão e perguntou porque não havia fotografado. Na mesa estavam lado a lado os casais Mesquita (Estadão) e Frias (Folha de São Paulo). Meio irritada respondeu" Deixa de bobagens e capricha na foto, isso é assim mesmo, você pensa o que?. Fiquei sem graça, fui até a mesa, me identifiquei e pedi licença para efetuar as fotos. Sorridentes me atenderam prontamente. Suely veio, me cumprimentou perguntou se queria jantar, agradeci, disse que não se precisava de alguma recomendação, então disse que  não havia mais nada a fazer e perguntou se queria beber alguma coisa e que os filmes teria de estar na redação no início da manhã, ficaria para a edição do dia seguinte. Fui até o bar, bebi duas doses de whisky com rapidez, dei uma respirada, liguei para o jornal, todos tinham ido para suas casas.. O relógio marcava 1,30 h da madrugada. Peguei um taxie fui para casa, já era dia de Santo Antônio, tudo iria recomeçar. Ao chegar em casa, caindo em pé, a bela e querida Marlene estava em sono profundo, a mesa posta com todo carinho, guardei tudo na geladeira, tomei um copo de vinho e fui dormir. Deixei um bilhete junto com as flores, pedi para me acordar às 8h. Teria de levar o filme para a redação e fazer um pequeno relato dos serviços. Assim foi meu Dia dos Namorados, assim é a dura vida de um fotojornalista frrelancer. 

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